Um sonho estranho

A chama das velas crepita. Um vento se atiça dentro da alcova e levanta seus cabelos negros, fazendo o tecido da túnica ondear sobre sua pele alva. Ela veste uma túnica totalmente branca, aberta no alto de sua coxa esquerda. Um amuleto esculpido pende à altura da curva de seus seios. Um murmúrio parece sair das próprias pedras ali expostas, quando ela ergue duas fotografias no ar.

A alcova é escura, a luz recai sobre o rosto das estátuas colocadas contra as paredes, as hastes dos cálices de prata, um límpido globo de cristal. Esculpidas em pedra, aquelas estátuas representavam fadas aladas e sereias e acrescentavam um charme todo especial.

Ela agora canta com uma voz suave. Palavras ancestrais da Irlanda em tom baixo e místico. Ela salpica o líquido brilhante de uma cumbuca azul nas fotos. Um sibilo de vapor. O murmúrio começa a seguir um ritmo lento e sinuoso. Seu corpo oscila, ela coloca as fotos de frente uma para a outra, deitando-as em uma bandeja de prata. Um sorriso secreto aparece em seu rosto após as fotos serem fundidas uma na outra.

Morgana, assim era seu nome, levou-me para fora da alcova, para o quintal daquela casa – onde o som de água sobre pedra se fazia ouvir e os ciprestes permaneciam de guarda. Era noite de lua. Cruzamos um pátio em forma de pentagrama, em cujo ponto mais alto havia uma estátua em latão representando uma mulher. A água gorgolejava, formando uma pequena piscina aos pés de Morgana.

-Quem é ela? Perguntei olhando para a estátua.

-Ela tem muitos nomes.

Ela pegou uma colher e mergulhou-a na límpida poça d’água. Provou um gole, em seguida despejou o resto no chão, para a deusa – representada pela estátua. Sem dizer uma palavra, ela atravessou o pátio e disse:

-Ela é Deméter, a deusa da Terra. Somos todos filhos dela.

-Somos todos filhos do Planeta Terra.

-Exatamente.

Ela se aproximou de mim para dizer:

-Minha tataravó era sacerdotisa de uma seita na Irlanda e, depois dela, sua filha. Uma xícara de sabá e alguns outros itens do cerimonial daquela seita chegaram até mim. Isso muito antes da época em que morremos queimadas.

-Morrer queimadas? (Perguntei).

-A ativa perseguição que houve às bruxas. Começou no século XIV e continuou pelos três séculos seguintes. A história ensina que a humanidade sempre necessita de perseguir alguém. Aquela era a nossa vez.

-Agora os cristãos são perseguidos, de uma maneira sutil. Eles são ridicularizados pelos materialistas consumidores.

-Sim, concordo. Você gosta de música, professor?

-Sim.

-Então escute essa.

Havia um sistema de som ali perto. Ela o ligou, o disco compacto (CD) começou a girar e a canção Hotel Califórnia, do grupo Eagle, fez-se ouvir.

-Lembra de alguma coisa?

-Sim. (Repliquei). O tempo em que eu vivia no Canadá.

-Você ia ao cinema no Canadá?

-Muitas vezes.

-Que tal o filme Sexta-feira 13?

-Bom. Assustador, mas muito bom. Jason massacrava os infelizes campistas.

-Tenho este filme aqui. Vamos assisti-lo?

-Eu gostaria muito, mas devo ir para casa.

-Sim. Você tem uma esposa e duas filhas. Não vou retê-lo, professor. Boa noite.

Então acordei daquele sonho estranho.

 

Taguatinga, 20 de dezembro de 2013.